(Por Viviane Araújo)
“Eu bebo, sem compromisso / com meu dinheiro / ninguém tem nada com isso / aonde houver garrafa / aonde houver barril / presente está a turma do funil!!”
“Eu bebo, sem compromisso / com meu dinheiro / ninguém tem nada com isso / aonde houver garrafa / aonde houver barril / presente está a turma do funil!!”
Do meu apartamento - eu, bailarina - ouço vozes ecoando o hino que reconheço como sendo tão teu. Paro por um instante na esperança de distinguir a tua voz em meio a tantas outras, mas é inútil. É sempre assim: tua voz me parece tão muda(da) quando é apenas uma que grita com mais algumas. Corro, então, para a sacada e ponho-me a ver o teu bloco passar.
E lá vai samba, batuque, ritmo, disritmia, suor, cerveja, cigarro, fumaça, máscara, fantasia. E lá vêm bocas que só se encostam, enquanto dizem que se beijam. Bocas bem treinadas na arte do encostar-abrir-sugar-e-partir-para-outras. “E com mais essa boca, já são 12!!!!”, brada um sujeito que em sua confusa aritmética divide enquanto pensa que soma. E lá vem mãos que se esbarram, achando que se tocam; corpos que se chocam, achando que se sentem; gente que se solta dizendo que se pega. "É carnaval, é pegação!!!", brada novamente o empolgado sujeito que agora já encostou em 15 bocas, mas beijar mesmo que é bom, ainda nada.
E eu - tão bailarina - acompanho a tua festa, que se revela bem debaixo da minha janela. E te vejo em êxtase: copo na mão, samba nos pés, cigarro na boca a dividir espaço com o riso tão franco de moleque atrevido que és. Tens a alma nesse instante pesada de tão leve, ouvidos só no explodir da bateria, olhos em todas as direções, mas em nenhuma, coração sabe-se lá onde, provavelmente a bater no mesmo compasso do requebrado da passista de uma escola de samba qualquer. Enquanto a tua banda passa, não aplaudo, mas pego-me a sorrir pela tua alegria, tão na contramão da minha, mas que por ser tua é, sim, um pouco minha também.
E eu - ainda muito, muito bailarina - queria poder te dizer agora que não importa se és furacão e eu calmaria, pois é no tumulto da tua existência que eu encontro a paz da minha. E que hei de ter por ti um amor tão intenso, imenso, mesmo quando denso, que não adoeça se eu tão sóbria te encarar sempre tão ébrio e nem se entristeça se vc for para sempre sul e eu tão norte.
Queria eu - apenas mulher, quase nada bailarina - que essa pudesse ser uma declaração de amor tão forte, tão minha, tão tua, que capaz fosse de recolorir nossa existência, de redesenhar, de redescobrir. Mas oq escrevo agora não é introdução nem fim, é apenas o meio de uma coisa qualquer, que bem que poderia ter sido amor, mas foi mistério. Que bem que poderia ter sido presença, mas foi lacuna. Que bem que poderia ter sido, mas que mesmo nunca sendo, ainda é.
E a tua figura - a que para o bloco é presença e para mim lacuna - não passa sem ser notada. E mesmo eu daqui da janela, não fico despercebida. Vc malandro carioca, eu bailarina: ambos em pleno carnaval, mas sem nenhuma fantasia. E eu - tão coração de mulher e alma de bailarina - pela eternidade de um instante, penso em me atirar janela abaixo e ir tentar dançar a tua coreografia. E posso sim, aprender os teus passos e até passar a me expor ao sol sem proteção como se fosse mormaço, até me deixar ser vencida pelo teu, tão meu, cansaço. Pq posso, sim, sambar e me acabar e te abraçar e te encantar, mas em algum ponto do desfile também vou ter que parar, te deixar, me escutar e continuar a bailar no palco que escolhi para ser o meu lugar.
Portanto, que passe o bloco, que passe a farra e a euforia, que passe vc, sempre a desfilar na tua avenida, que não, não é a minha. E caia no samba, mas não deixe cair das mãos a tua alegoria. Fique por aí no teu espaço, na tua ginga, nos teus confetes e até mesmo nas tuas serpentinas. E samba - meu boêmio preferido - samba no teu ritmo, a tua história. Pq eu - bailarina - vou estar sempre na mesma janela, bailando, qd o teu bloco passar. E depois que ele se for eu - mulher que sabe despir a bailarina - ainda assim, continuarei a bailar.
posted by Vida @ 10:25 PM
Este é o (maravilhoso) texto de Viviane Araújo, que originou o texto-irmão "A bailarina e o boêmio", de minha autoria. Leiam os dois, com carinho. Em seu mundo, os personagens (com)partilham sensações e emoções como as pessoas (do mundo real) deveriam fazer sempre. O mundo seria tão melhor...
Este é o (maravilhoso) texto de Viviane Araújo, que originou o texto-irmão "A bailarina e o boêmio", de minha autoria. Leiam os dois, com carinho. Em seu mundo, os personagens (com)partilham sensações e emoções como as pessoas (do mundo real) deveriam fazer sempre. O mundo seria tão melhor...