Domingo, 7 horas da manhã. Muito, muito cedo. Pelo menos, para mim. Não é natural do meu biorritmo, acordar (tão) cedo. Sou da madrugada. Fiel amante da noite e da lua. Além disso, havia a chuva. Muita chuva. Chuva das 7h às 8h. Sem parar.
Eu precisava sair. Olhei para o carro. Branquinho, limpinho, naquela chuva toda, dava até pena. E medo. Eram litros e mais litros de atividade pluviométrica contra a minha recente CNH.
Mas eu tinha que sair. Precisava visitar minha filha, no apartamento da mãe. Abri a garagem. Preparei o espírito. Foi quando reparei o carro do meu vizinho fechando minha saída. Como ele não tem garagem, sempre deixa seus DOIS carros na calçada, alinhados. Mas só havia um. O que era mau sinal: devia ter saído mais cedo com a família, tirou o outro carro da frente para liberar a passagem... e esqueceu de deixá-lo numa posição que não atrapalhasse a saída do meu veículo.
Mesmo assim, esperei até as 9h (e nada da chuva passar), pois não é correto falar com alguém pela manhã antes disso – questão de etiqueta; de gentileza, assim me ensinaram. Bati na sua porta, para ver ser havia alguém por lá. Bem, não havia. E o jeito foi fechar minha garagem, pegar o guarda-chuva e seguir viagem. A pé. Até o ponto de ônibus. Que era bem distante da minha casa, diga-se de passagem.
Até então, tudo bem, já estava acostumado. E pé da estrada. Mas o que irrita é você ver seu ônibus chegando, você estando muito distante da parada. Você pensa: “Ah! Está chovendo, bem ali tem um cruzamento, se eu der a mão, o motorista vai se sensibilizar, aproveita que tem de parar e abre a porta...”
Abrisse? Ele me viu correndo, dando sinal que precisava subir, mãos juntas (quase em oração), diminuiu a velocidade e, conforme previ, parou no cruzamento. Mas olhou para mim, com aquela cara feia, passou a primeira marcha, a segunda, olhou para o outro lado – só pra ver se não vinha ninguém na contramão... – e seguiu viagem. E o idiota aqui, pisando em água suja, lama, pulando restos de lixo, deslizando aqui e acolá... Indignado com sua falta... de gentileza.
Bem, cada um dá o que tem, não é mesmo? E, mesmo vendo o coletivo mal-educado se afastando, pensei: “Putz! Domingo. Outro desse, só daqui a uma hora. No mínimo.”
E assim se passaram os mais longos 60 minutos, 3600 segundos, da minha vida, naquele domingo chuvoso. Quase ninguém na rua, porque (ainda) havia muita chuva. Incrível como esse fenômeno da natureza só aumenta quando você não está em casa, enrolado num edredom, né?
Enfim, para meu bem-estar, um novo ônibus se aproxima. Não perdi tempo. Corri para o meio fio e, com uma das mãos acenei para não ser mais uma vez desprezado. E não fui. O motorista, muito cortez, até diminuiu a velocidade antes de parar, provavelmente para não me afogar com as águas que alagavam o centro da cidade. “Quanta gentileza!” – Pensei.
Mas, ao subir, me defrontei com um total antagonismo: todos os assentos dianteiros, reservados para idosos, mulheres grávidas e deficientes físicos, estavam ocupados por idosos. Além disso, muito idosos estavam em pé, aproveitando a gratuidade – um dos direitos mais sofríveis que tentam usufruir – quando o ônibus estava completamente vazio após a catraca. Resmunguei: “Por que não deixa os idosos entrarem pela porta traseira e facilita a entrada dos pagantes?” Não houve resposta. Mas na cara do motorista estava escrito (em hebraico, grego e latim), para quem quisesse ver: “Normas da empresa...”
Precisei passar por uns dois pontos de ônibus equilibrando uma mochila cheia de coisas e um guarda-chuva enorme e molhado sem me mexer um milímetro. Não havia condições de seguir em frente, devido à multidão centenária e às curvas acentuadas do percurso, sempre feitas com grande habilidade do motorista – veloz como o próprio deus Hermes. Mas eu e os demais passageiros, sofrendo como titãs no Tártaro, pensávamos: “devagar, motô, Você não tá carregando boi não...”
Então, chegamos a um impasse: um novo ponto de ônibus. Só que, dessa vez, cheio de gente. O que fazer? Pensei rápido. Aproveitei o veículo parado e fui me espremendo e pedindo desculpas, para poder passar. Após muito esforço, ultrapassei a catraca e me sentei perto do cobrador, pois era a cadeira mais próxima. E fiquei olhando a janela, a paisagem e implorando que aquele ônibus chegasse logo ao seu destino, pois queria muito dar um abraço na minha filha. Estava meio desligado, distante, até que uma movimentação incomum chamou minha atenção.
Um jovem, devia ter seus 25 anos, trajando uniforme do Serviço Ambulatorial Móvel de Urgência (o famoso SAMU), entregou seu cartão de vale-transporte ao cobrador. Primeira tentativa. Cartão recusado. Segunda tentativa. Cartão recusado. Terceira, quarta, quinta... Recusado. Recusado. Recusado. O coitado estava visivelmente cansado, com sono, olhos vermelhos – muito provavelmente acabara de sair de um plantão bem puxado. À sua frente, o cobrador mostrava um cartazinho safado que dizia: “Caso o cartão esteja sem créditos ou com defeito, o usuário deverá PAGAR a passagem.”
“Puta que pariu!” – pensei. Eu já passei por isso. Quem nunca vivenciou essa cena pode imaginar a situação: as pessoas subiam cada vez mais, os idosos se espremiam para dar passagem, outros, sem entender nada, reclamavam que a fila não andava... E o rapaz balançava a cabeça, muito provavelmente, dizendo “estou sem dinheiro...”
Ah! Não consegui me conter. Levantei e entreguei ao cobrador o valor da passagem.
Silêncio no ônibus. Acho que se instalou um vácuo de consciência tão grande que mais parecia a ativação de uma tecla “mute”, no controle (remoto) da vida. Todos pararam de conversar, de reclamar, de se mexer para assistir à cena.
O rapaz falou que não precisava, que iria descer... Mas eu o interrompi. E disse, em alto e bom som: “Nem pensar, meu amigo: você faria muito mais por qualquer um de nós, se fosse preciso.” – E voltei a minha cadeira. Voltei a olhar a janela, a chuva (que começa a parar) e a pensar que aquele dia tinha tudo para ser o pior domingo de todos. Mas entendi que era para eu estar naquela hora, naquele ônibus (e não no outro, mal-educado). Na minha dose diária de exercício da gentileza.
(Guilherme Ramos, 31/01/2012, 22h13, lutando contra um sono tão estranho que mais parece meu corpo e mente conspirando para que eu não escrevesse esse texto. Mas, como sou “do contra”... Ei-lo! Rssss... Interessante: o sono PASSOU! Kkkkkkkkkk...)
Ah! E exercitando - mais uma vez - a gentileza, sugiro que assistam a esse vídeo maravilhoso, sobre o mesmo tema:
Vamos exercitar a GENTILEZA mais vezes? Nós só temos a LUCRAR!