Sabe a sensação de estar sozinho
à noite, peito prestes a explodir, sem companhia? Quando a solidão de mil almas
tristes lhe cerca, atenuando dor e sofrimento, o corpo sua, as lágrimas escorrem
sem parar e você não vê mais razão para viver? Eis a noite...
Olhando a janela embaçada, avisto
ruas vazias, esfumaçadas, numa mistura de calor dos apressados carros que disputam
o primeiro lugar no semáforo intermitente e dos esgotos entreabertos, coletando
o resto das águas de chuvas passadas. Essas coisas...
O apartamento é apertado, sujo,
poucos móveis. Sentado à cama, cabeça contra a janela, mãos trêmulas, vejo passar
o tempo, os quartos da lua, as estações do ano, a vida. Dos outros. Porque a
minha, não tem mais sentido. Tinha. Eis o fato...
Ontem, fiz alguns ataques perfurocortantes.
Sem qualquer dor. Nem em mim, nem nas vítimas. Sou bom no que faço. As pessoas
é que não estão acostumadas a serem atingidas por mim. Pelo que causo nelas.
Porque se tornaram tão frias, tão insensíveis, que atentados contra suas
convicções racionais às vezes pouco surtem efeito. São mal interpretados, até. Daí,
minha tristeza...
Há poucos anos, fazia meu
trabalho diariamente. Incansavelmente. Não era recompensado, mas gostava do que
fazia. Focava meu objetivo, esticava um braço, tencionava o outro, relaxava...
e pronto. Voltava pra casa. Hoje, passo horas a fio, correndo atrás das pessoas
certas e, quando consigo encontrá-las, não é surpresa quando suas armaduras de
ceticismo rebatem meus ataques. Frustração, há. Mas nunca pensei em desistir.
Até hoje...
Busquei meus últimos alvos.
Pessoas comuns, de famílias comuns, sem nada de especial para oferecer. Apenas
seus corações puros. Seriam os últimos humanos (de corpo e alma) na terra? Pensei
que sim. Por isso, eu os ataquei. Antes que eles se tornassem frios e iguais
aos outros. Crueldade? Não vejo assim. Eu... os salvei...
Quando o sol despertar mais uma
vez e os seus raios iluminarem os corpos, espalhados pela cidade, eles já devem
estar acompanhados por mais outras pessoas. Serão o dobro de amantes
desconhecidos, conhecendo-se aleatoriamente, experimentando os prazeres da vida
a dois, sem receios, sem medos, sem condições. Pois o que lhes proporcionei foi
esquecido pelo resto do mundo. Estes terão a última chance. O último sentimento...
Talvez, assim, eu tenha ajudado a
humanidade. Talvez, assim, eu desperte o interesse de outros iguais a mim, a continuarem
o trabalho que insisti fazer, quando todos os outros desistiram, por achar que
ninguém mais seria sensível ao amor. Talvez as crias de meus alvos alcancem a
salvação e, a cada novo contato amoroso, mais e mais existirão. Esse foi o
desejo...
E os portadores do amor,
descendentes dos que foram inoculados por minhas flechas, repovoarão o mundo,
numa pandemia nunca vista, mas desejada em segredo por um grupo seleto e
discreto – os chamados românticos – incompreendidos servidores do amor verdadeiro,
que beirou a extinção. Até esta noite...
Guardarei minhas flechas, esconderei
o meu arco e morrerei aqui, neste apartamento, num bairro afastado dos grandes
centros. Com o tempo, meu corpo apodrecerá e será apenas o de mais um indigente.
Se for encontrado, não será enterrado, mas estudado pela ciência, devido às
suas características especiais. Asas. Incomum para humanos, natural para os
Erosapiens sapiens. Desconhecidos até então. Até minha morte...
(Guilherme Ramos, 14/04/2013,
23h09, após assistir – várias vezes – ao clipe “Give me Love”, de Ed Sheeran. A idéia
inicial de conto era outra, mas minhas mãos não acompanharam o pensamento e só consegui escrever
o que vocês acabaram de ler. Rssss...)
Imagem: Google.
0 comentários:
Postar um comentário
Sua participação aqui é um incentivo para a minha criatividade. Obrigado! E volte mais vezes ao meu blog...