sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Conto-Crônica de uma Paterna Idade


O caso é: em (toda a) sua vida não foi um bom pai. Algumas fotos em preto e branco (devido à época que seu filho nasceu) e só. Lembranças, poucas. Efeitos (colaterais) muitos. Não, não foi um bom pai. Foi ausente. Aos 2 meses de idade de seu filho, saiu de casa. Sua sogra disse que “comprou” a criança com alguns trocados, pois o homem só falava em sair para tomar cerveja. Drama familiar verídico. Voltou algumas vezes (talvez para pegar mais dinheiro – ou, apenas, sondar o terreno). Quando o filhote tinha 10, 12 anos, voltou novamente. Sentou no batente da porta e recebeu aquela criança desconfiada com o silêncio. A mãe (ou será que foi a avó?) apenas disse:

- É o seu pai. Fique com ele um pouco.

Sorrisos amarelos de ambas as partes, parecia que nada tinha acontecido antes e o pequeno pode falar asneiras à vontade. Até chegar a hora do homem ir embora. E foi. Por mais alguns anos.

Voltou quando a criança já era adolescente. 16. Fase difícil. E difícil foi o encontro. Já chegou dizendo:

- Agora que a “velha” morreu – referindo-se à finada sogra – vou voltar para casa.

Recebeu uma porta na cara. E uma resposta tão rápida quanto o movimento dela.

- Agora quem é o homem da casa sou eu. Não precisa mais voltar.

E se passaram mais algum (poucos) anos. Era noite quando aguardou o filho do lado de fora da casa. Noite fria. O filho, agora com 18, voltava cansado de um ensaio de teatro. Carregava muitas tralhas e ele esperou o rapaz se aproximar. Olharam-se nos olhos. Silêncio.

- Eu vou entrar! – Disse o pai.

- Não mesmo. – Disse o filho, dando de ombros e abrindo a porta.

Não houve mais palavras. Só um golpe, com um cabo de vassoura, que atingiu em cheio as costas do rapaz, que, devido à posição que se encontrava, caiu para dentro da residência. Ele não podia acreditar no que seu pai acabara de fazer. Olhou-se no espelho e viu a marca rubro-violeta de um canto a outro das costas. Não manteve o controle. Tentou revidar. Sabiamente, sua mãe trancara novamente a porta, impedindo-o de sair. E o embate foi verbal. Certa hora, chamou a polícia. E a polícia não chegou. Chegaram vizinhos. Curiosos, acerca do fato. 

- Eu não fiz nada, disse o pai. A madeira caiu do telhado e acertou ele! – Afirmou.

- E deixou uma marca “horizontal” nas minhas costas? – Retrucou o filho. – Você é doido! Não apareça mais aqui!

As pessoas afastaram o pai e o levaram embora. A noite pôde ser de paz.

Dias depois (ou semanas depois), não se sabe ao certo, o pai volta e novamente espera à porta. Quando o filho chega, apenas o vê com outro pedaço de madeira numa mão e na outra o braço de sua mãe, atravessado numa bandeira da porta já quebrada. Sua reação foi imediata: deu um empurrão tão forte no pai que ele caiu. E a madeira também. E lhe foi dada uma lição. Uma paulada em cada mão, para estourar as unhas. Para ele ver como se bate em mulher. Agora, apanhava do filho. Novamente os vizinhos chegaram e apartaram, melhor dizendo, seguraram o filho, antes que uma tragédia se findasse. E deixaram o pai ir. A uma pouca distância, o filho se esgoela:

- A partir de hoje, se você me vir numa calçada, atravesse a rua, porque senão vai ter merda! Tá me ouvindo? Vai ter merda! Merrrrdaaaaaa!

E ele seguiu. Não se virou, nem se despediu. Sumiu. E dessa vez, para não mais voltar. O que foi um alívio para a família. Muito mais tempo se passou e não se tinha mais notícias dele. Apenas rumores. Estava numa hospedaria próxima, mas nunca foi visto nos arredores. Parece que o recado foi bem entendido. 

Até que 20 anos depois, numa roda de amigos, alguém diz:

- Estava fazendo uma matéria para TV, num abrigo de idosos e acho que vi seu pai.

Silêncio completo. A reação do filho foi fria.

- Foi? Não sabia. – E pensou alto - É, ele deve ter enchido a paciência da família e o colocaram lá.

O amigo nem continuou a conversa. Apenas bebeu sua cerveja e mudou de assunto. Mas aquilo ficou na cabeça do filho: seu pai, sozinho, num asilo. Que fim para um ser humano. Por pior que seja, o homem deve ter alguém para se apoiar e viver o resto de seus dias. Mas só se colhe o que se planta e essa foi a colheita que se teve. O filho continuou sua vida. O pai continuou a sua.

O filho teve uma filha e sua esposa até lhe perguntou:

- Vai apresentá-la ao seu pai?

Novamente o silêncio tomou conta de tudo. Mas uma breve resposta finalizou o diálogo.

- É melhor não. Mas, quem sabe? – E só ficou na promessa. 

A esposa engravidou novamente. O filho, outra vez pai, fez um comentário surpreendente:

- Se for menino, podíamos usar o nome de meu pai, o que acha?

Ela concordou, mas com o tempo, resolveram, inconscientemente, usar outro nome. Não era pra ser. Ela novamente sugeriu que ele visitasse o pai, pois precisava perdoá-lo e livrar-se de qualquer ressentimento. Isso não levaria a nada.

Novamente, veio o silêncio. E uma curta resposta.

- Talvez. 

Depois disso não se falou mais nada. Talvez, por respeito à sua opinião, talvez por saber que nada o convenceria de fazer algo que não quisesse. Talvez quisesse ir, mas, não tivesse coragem... Eram tantas as opções que não valeria apena listá-las. Afinal, a opção é ir ou não ir. Os motivos podiam ser quaisquer. Não interessava.

Passam-se meses. Certa tarde de outubro, o telefone toca.

- Quanto está o salário mínimo? – Era sua mãe.

- Não sei bem. – Respondeu. – Uns R$ 540,00. Por quê?

- Seu pai faleceu. Foi enterrado ontem. 

Novamente o silêncio. Dessa vez, justificado. Era sua mãe. Numa calma inexplicável. Não havia frieza e nem ela fez por mau gosto. Apenas não havia mais tantos laços. E ela, com 71 anos, tinha seus próprios problemas de saúde, que justificavam qualquer coisa.

- E você? Como está? – Ele tentava manter a calma, mas estava abalado. Pai é pai. A morte sempre deixa a pessoa sem norte.

- Bem. Sua tia vai trazer uns documentos dele. Vou ficar recebendo uma pensão. Vamos colocar na poupança...

- Nunca precisamos do dinheiro dele – seu orgulho estava ferido, por algo mais afiado que a mais afiada das navalhas – Não será agora que vamos precisar.

- Vou cuidar disso. Depois nos falamos.

Ele desligou. E a sensação de vazio ainda preenchia sua alma. Estranho quando a indiferença se transforma numa mea culpa post mortem. Parece clichê, mas ele sentiu a perda. Disse, certa vez, que sua morte não seria sentida por ele. Ele mentiu. Principalmente para si próprio.

Houve um momento de pena. O miserável morreu cego. Nem que ele tivesse levado a filha para ele, ele poderia desfrutar do momento. Estava cego há alguns anos. Sua família (toda) não sabia. Estava em um lar para idosos. Isso soube há pouco tempo, por terceiros.

É um momento indescritível, a morte de um ente não-querido. Por mais que o culpasse de todas as coisas ruins que ele fez, precisava ser-lhe grato. Ele contribuiu para que o filho existisse. E, talvez, somente por ele ter sido tão omisso, egoísta, bêbado e afins, seu filho pôde ser tão diferente. Pôde fazer a diferença. E, nesse momento, pôde ser diferente. Não quer ser igual ao pai. Está tentando escrever uma história diferente. Tem duas filhas e quer dar-lhes todo o amor, respeito, conforto e tudo de bom que uma família deve ter. Tudo o que ele próprio não teve. Do pai. 

Que ele, nesse momento, onde quer que esteja, possa descansar em paz. Numa paz que nunca teve. Porque “errar é humano; perdoar é divino.” E estamos no processo. Que os remanescentes da família possam seguir seus caminhos. Ainda há muito o que fazer. E deve ser bem feito.

(Guilherme Ramos, 16/10/2011, 1h55.)

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